Maria Amélia Monteiro, Visão online,

 

E, de todas essas histórias, houve uma em particular que apresenta todas as características que são apontadas, naquela obra, às vítimas e aos autores de burla.

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Andava a cogitar sobre um tema relativo à fraude, quando me deparei, oportunamente, com um artigo de Catarina Ribeiro publicado na Revista do Expresso do passado dia 18 de junho sobre vítimas e burlões.

Para além de relatar várias histórias de burlas e de ouvir várias opiniões de técnicos da Polícia Judiciária, refere um livro da autoria da norte-americana Maria Konnikova “The Confidence Game: Why We Fall for it … Every Time”.

Segundo a referida investigadora, as vítimas de burla apresentam um estado de espírito que facilita a burla: ou uma mudança radical e traumática de vida ou uma fase de sucesso, em ambos os casos, mexendo com a sua autoestima.

E as histórias de burlas aí relatadas fizeram-me viajar no tempo e recordar alguns casos de que tive conhecimento direto enquanto advogada.

E, de todas, houve uma em particular que apresenta todas as características que são apontadas, naquela obra, segundo o artigo, às vítimas e aos autores de burla.

Estávamos nos anos 90 quando uma mulher apareceu no escritório a solicitar o patrocínio judiciário do seu companheiro que se encontrava em prisão preventiva. Tratava-se de centenas de processos de burla cometida de norte a sul do país e de uma diversidade de vítimas: vendedores de carros, eletrodomésticos, brinquedos, mobília, vestuário, enfim, tudo o que pudesse ser adquirido numa loja….

No entanto, o modus operandi era sempre o mesmo: o indivíduo apresentava-se nas lojas exibindo um anel de licenciado em medicina e mostrava-se interessado num determinado produto. Metia conversa com o vendedor ou o proprietário da loja, solicitava todas as informações sobre o mesmo e o preço, mas, alegando não estar prevenido com dinheiro, cheque ou cartões, prometia voltar mais tarde. En passant, referia ser médico no Hospital e ter pouco tempo disponível.

Estas conversas sucediam-se no tempo até que o vendedor proferia a frase fatal: “leve sr. Doutor e depois passa por cá para pagar”. Claro que o “médico” não se fazia rogado, levava a mercadoria e nunca mais voltava para pagar. Cabia depois ao vendedor apresentar queixa por burla.

A sua companheira, perdidamente apaixonada, recém-divorciada e com uma criança a cargo, tudo fez para que o indivíduo tivesse o adequado patrocínio judiciário. Afinal de contas, era um excelente pai e um ótimo marido.

Foram muitos os julgamentos a que foi sujeito e longo o período de prisão preventiva. Só para abreviar, posso adiantar que o indivíduo assumia em julgamento comportamentos tais, que em todos os processos foi decidido avaliar se o mesmo era imputável. O resultado foi a declaração de inimputabilidade e a sua libertação passados alguns anos.

Enquanto se encontrava em prisão preventiva, respondeu a anúncios de teor sentimental e trocou correspondência com várias mulheres a quem, nas visitas, prometia casamento logo que recuperasse a liberdade. Entretanto ia pedindo dinheiro para as despesas da prisão e para o advogado. Escusado será referir que tinha uma escala muito bem organizada e nenhuma sabia da existência das demais.

Recordo-me que uma delas conseguiu aceder a um dos processos e nos questionou sobre a data prevista da libertação do seu amado para que pudesse organizar a sua vida depois do casamento. Afinal ele já tinha dinheiro para a caução e só nos cabia fazer as diligências necessárias para que a prisão preventiva cessasse.

Quando a companheira foi alertada, teve uma reação de incredulidade, acusando a “rival” de ser uma frustrada que alimentava uma fantasia sem qualquer fundamento porque estava segura do relacionamento que a unia ao indivíduo.

Todas as mulheres que se apaixonaram pelo burlão tinham uma característica em comum: estavam sós ou a sair de uma relação amorosa traumática que não resistiram aos seus encantos e prosápia. Segundo uma delas, ele fazia-a sentir viva de novo e tratava-a como se fosse a única e as mais bela mulher que pisava a terra.

Entretanto abandonei a advocacia e muito mais tarde, no início dos anos 2000, li várias notícias sobre o mesmo indivíduo, de novo preso preventivamente por, alegadamente, se ter apropriado de diplomas académicos em branco que preencheu abusivamente com os seus dados pessoais.

Como tinha sido enfermeiro durante o serviço militar ainda se candidatou e foi admitido como médico num Hospital público, até os Recursos Humanos se terem apercebido de uma incorreção no diploma académico.

Veio a descobrir-se que o mesmo tinha abusado da confiança de uma funcionária da Faculdade de Medicina que era depositária dos diplomas académicos assinados em branco, se tinha apropriado de dois e os tinha preenchido.

Pelos vistos, voltou a burlar vendedores de material médico com o qual tinha aberto dois consultórios de ginecologia obstetrícia em dois locais de excelência de Lisboa e no qual tinha exercido a atividade.

Desconheço o atual paradeiro e o desfecho dos vários processos, assim como não tenho qualquer informação sobre o perfil das pessoas que foram novamente burladas, mas fiquei com uma certeza: este livro que estuda o perfil das vítimas de burla será uma das minhas futuras leituras obrigatórias.