Aurora A. C. Teixeira, Visão online,

 

Os milhões e pessoas que saíram às ruas em protesto contra o mais recente escândalo de corrupção passaram uma importante mensagem à classe política (de esquerda, centro e direita): ninguém é intocável.
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O Brasil progride à noite, enquanto os políticos estão dormindo” - Elias Murad (médico brasileiro, fundou e presidiu a ABRAÇO, entidade dedicada ao combate às drogas)

 O Brasil é uma grande nação.

Com uma população estimada (dados de janeiro de 2016) em quase 208 milhões de indivíduos, apresenta uma economia relativamente dinâmica – em termos reais, o crescimento médio anual entre 2010-2014 foi de 3.2%, o que compara favoravelmente com a média de 1.9% dos 34 países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

Os últimos anos foram marcados por um incontestável progresso ao nível económico e, sobretudo, social. Segundo o Banco Mundial, 2003-2013 foi uma a década de progresso económico e social durante a qual cerca de 26 milhões de pessoas saíram da pobreza. A desigualdade, apesar de se manter em níveis extremamente elevados quando comparada com os valores médios dos países da OCDE, observou uma redução substancial (o coeficiente de Gini caiu 6% em 2013 para 0.540 – o valor médio da OCDE é 0.315). O rendimento dos 40% mais pobres cresceu, em termos reais, 6.1% (para a população total o valor foi de 3.5%). A escolaridade média da população em idade ativa registou um assinalável aumento: em 1980, a população em idade ativa possuía, em média, 2.6 anos de escolaridade formal; em 2010, esse valor era quase 3 vezes maior, 7.2 anos.

O progresso da escolaridade é particularmente importante. Num artigo recente (2015), publicado no Journal of Economic Growth, Piergiuseppe Fortunato (UNCTAD) e Ugo Panizza (The Graduate Institute of International and Development Studies, Suiça) demonstraram que o sucesso das instituições democráticas está intimamente associado à escolaridade da população. A escolaridade potencia o envolvimento e participação política dos cidadãos, aumentando a capacidade destes, não apenas em efetuar boas (ex ante) escolhas eleitorais, mas, sobretudo, em avaliar (ex post) as acções dos políticos eleitos.

Assim, a indignação e os protestos da população brasileira face aos escândalos da corrupção endémica que perpassa todos os quadrantes políticos não deve ser vista apenas como uma ‘luta de classes/raças’ (ricos/brancos vs pobres/outros), mas antes como um sinal de progresso promovido por uma cada vez menos ‘passiva’ e mais alerta e reivindicativa população. Na minha ótica, os milhões e pessoas que saíram às ruas em protesto contra o mais recente escândalo de corrupção passaram uma importante mensagem à classe política (de esquerda, centro e direita): ninguém é intocável.

A corrupção entre a classe política Brasileira – incluindo o alto escalão do PT [Partido dos Trabalhadores] – é real e substancial.” (Glenn Greenwald, Andrew Fishman e David Miranda, in The Intercept, publicado em 19 de março de 2016).

Há de facto inúmeros indícios que envolvem Lula, uma figura quase mítica da política brasileira (presidente do Brasil entre 2003 e 2011), no escândalo de corrupção ‘Lava Jato’ - esquema de corrupção, branqueamento de capitais e desvio de dinheiro, estimado em 1,5 mil milhões de euros, envolvendo a companhia estatal brasileira Petrobras, executivos de empreiteiras que assinaram contratos com a empresa e agentes públicos.

Numa caricata tentativa de evitar responder diretamente ao juiz responsável pela ‘Operação Lava Jato’, Sérgio Moro, Lula tomou posse (em 17 de março) como ministro da Casa Civil da Presidente Dilma Rousseff, passando, na qualidade de ministro, a beneficiar de “foro privilegiado”, tendo de igualmente responder às acusações, mas perante o Supremo Tribunal Federal. Pouco depois de ter tomado posse, Lula deixou de ser ministro (a Justiça brasileira suspendeu a sua nomeação para o cargo) mas ainda pode voltar a ser…

A gestão desastrosa de todo este processo colocou a Presidente Dilma Rousseff sob a ameaça de impeachment (impugnação de mandato), que é, de resto, um processo legítimo numa democracia quando é provado que o suspeito é culpado de vários crimes.

O problema do Brasil não fica, porém, por aqui…

As partes que seriam eventualmente favorecidas pelo impeachment da Presidente estão pelo menos tão envolvidas quanto ela em escândalos de corrupção. Aqui vai o ‘chorrilho’:

  • cinco dos membros da comissão de impeachment estão também a ser investigados por envolvimento em escândalos de corrupção (incluindo Paulo Maluf, com um mandato de prisão da Interpol - sentenciado em França por lavagem de dinheiro);
  • dos 65 membros do comité de impeachment do congresso, 36 enfrentam presentemente processos judiciais;
  • no congresso, o líder do movimento pelo impeachment, Eduardo Cunha, é suspeita de possuir várias contas secretas em bancos na Suíça onde alegadamente depositaria dinheiro proveniente de subornos;
  • o senador Aécio Neves, líder da oposição brasileira, teve pelo menos 5 denúncias diferentes de envolvimento em escândalos de corrupção;
  • uma das mais recentes testemunhas na Operação Lava Jato implicou o vice-presidente do país, Michel Temer, substituto de Dilma Rousseff caso ela seja destituída.

Isto resume-se, nas palavras do nosso (de Portugal e Brasil) grande Eça de Queirós, à “Política de Interesse”. Tal como Eça referia a propósito de Portugal (há cerca de 150 anos!):

[No Brasil] não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade (…). A ciência de governar é neste país (…) influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse. (…) ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo (…). A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se.” (Eça de Queiroz, in 'Distrito de Évora’, 1867).

‘Eça’ é que é essa!