Maria Amélia Monteiro, Visão on line,

 

Começou a fazer contas a tudo o que significava deixar de exercer o cargo da presidência a que já se habituara

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Estava em final de mandato e não podia legalmente concorrer a eleições no mesmo concelho. Ainda tinha esperado uma vaga de fundo das bases partidárias que o propusessem como cabeça de lista num dos concelhos vizinhos, mas tal não aconteceu.

Claro que não podia queixar-se, uma vez que o seu sucessor seria o seu filho.

Começou a fazer contas a tudo o que significava deixar de exercer o cargo da presidência a que já se habituara havia mais de 20 anos: pagar carro, seguro e combustível e, pior que tudo, ter de conduzir de novo, porque a mordomia do motorista sempre disponível iria acabar.

Além disso, a reforma não incluía os almoços e jantares, as viagens que sempre aproveitava para prolongar pelos fins de semana na companhia da família mais próxima, o alojamento em hotéis e pousadas adequadas ao cargo. Por outro lado, as viagens ao estrangeiro no âmbito das geminações e cooperação com cidades de países longínquos e de agradáveis paisagens também terminariam, ou, pelo menos, seriam bem mais escassas. As ofertas que lhe eram feitas sempre que visitava as forças vivas do concelho também deixariam de ser tão frequentes.

Ora, havia uma solução para eliminar este corte no orçamento familiar. Depois de muito cogitar, lá marcou uma reunião de trabalho com o seu congénere do concelho vizinho que, afortunadamente, também tinha o filho como mais que garantido sucessor.

Durante o almoço que se seguiu, expôs as suas ideias e propôs a criação de uma sinecura[1] que beneficiaria ambos, sem que os respetivos sucessores incorressem em riscos desnecessários e, pior, ainda, em perda de mandato.

Era simples e inatacável legalmente: bastava que cada um dos novos presidentes (os respetivos filhos) os contratasse como consultores, por ajuste direto e com base no know-how que adquiriram ao longo dos anos sem que, depois, fosse exigido qualquer trabalho ou produto específico. Afinal, não seriam apenas consultores?

Mas, impunha-se uma cautela acrescida: não poderiam exercer as “novas funções” no concelho onde tinham sido presidentes, porque tal poderia dar origem a rumores e a denúncias que deitariam tudo a perder, nomeadamente, a carreira dos filhos. Mas, também, as distâncias não eram significativas, porque ambos residiam em locais bastante próximos da sede dos concelhos vizinhos e sempre se aproveitava para, de vez em quando, aparecer e atualizar a informação.

Claro que isso implicaria criar uma empresa (sociedade por quotas em que a respetiva esposa tivesse uma quota razoável) com um nome, sede e um objeto social que não levantassem suspeitas e passassem despercebidos. Este aspeto era fundamental para que, quando fossem apresentadas as propostas de contratação, num conjunto de muitas outras, para o parecer prévio vinculativo obrigatório que no início do ano eram apresentados, não transparecesse qualquer ligação aos respetivos “sócios”. Mas, com a criação da “Empresa na Hora” e as facilidades que agora existem para se dissolver uma sociedade logo que desnecessária, não valia a pena correr o risco de concorrerem como sociedades unipessoais. Era só incluir essa despesa no contrato na novel condição de cidadãos, retius, consultores…

 

Notas

[1] Uma sinecura (do latim sine, "sem" e cura, "cuidado") é um tipo de emprego ou função, quase sempre em cargo público, e que praticamente não requer responsabilidade, trabalho ou serviço ativo.