António João Maia, Diário Económico

Sempre que uma acção coloque em causa a confiança, ou seja quando se apresenta desconforme com as expectativas - como uma espécie de mentira - a coesão social fica afectada

O homem é por natureza um ser relacional. É no seio do grupo – na sociedade e na cultura – que desenvolve as suas aptidões e dá forma aos seus sonhos e anseios, tornando-os reais, tanto no plano individual como no plano colectivo. E o processo, de natureza dinâmica, de desenvolvimento da sociedade e dos quadros de valores culturais faz-se essencialmente em torno de um factor determinante, que é a confiança, e que deriva da coerência – da verdade – entre valores (e normas) e práticas evidenciadas pelos sujeitos.

Sempre que uma acção coloque em causa a confiança, ou seja quando se apresenta desconforme com as expectativas – como uma espécie de mentira – a coesão social fica afectada e dá naturalmente lugar à desconfiança e à incerteza. A mentira, enquanto contraposição da verdade, enquanto prática desconforme com as expectativas sociais, na medida em que desafia os valores e as normas socialmente assumidas, apresenta uma dimensão fraudulenta.

A confiança alimenta-se e reforça-se com a concretização – confirmação – das expectativas que os sujeitos edificam com base em experiências anteriores relativamente às mais diversas vertentes das suas vidas (as relações com os seus familiares, amigos, colegas de trabalho, instituições e outro tipo de relações que possamos imaginar). Quando, por qualquer razão, os sujeitos se cruzam com práticas desconformes, incoerentes, afastadas e sobretudo contrárias às suas expectativas – aos quadros de valores e normas em que acreditam – sentem-se defraudados e experimentam sentimentos de desconfiança face a quem os rodeia, sobretudo aos que praticaram essas acções.

É evidente que os quadros de valores fundamentais e normas que modelam as acções dos sujeitos de uma sociedade não são imutáveis, nem é expectável – nem imaginável – que assim seja. Aliás, a história da evolução das sociedades e das culturas tem confirmado esse processo evolutivo e tem revelado que ele se faz essencialmente de duas formas. Uma mais gradual e matizada, que podemos ver como como uma evolução dentro do mesmo núcleo de valores fundamentais, e uma mais brusca e profunda que em regra traduz uma mudança revolucionária do próprio núcleo de valores fundamentais, e que decorre de processos em que as práticas dos sujeitos se afastam tendencialmente e de forma cada vez mais vincada desse conjunto de valores, acabando mesmo por forçar a sua revisão ou alteração.

E, de acordo com o quadro de valores em que ainda dizemos acreditar, os sinais dos tempos que atravessamos, particularmente no mundo e nas culturas ocidentais, parecem denotar traços de proximidade com a mentira, com a fraude, com a incerteza. Neste sentido, podem ser o prenúncio de uma reconfiguração desse conjunto nuclear de valores.