Carlos Pimenta, Visão on line,

O ano europeu do desenvolvimento visa mesmo o desenvolvimento? De quem?

...

Talvez o leitor, atulhado de impostos, subjugado ao desemprego e ao trabalho precário, com reduzido apoio social, com escolas e hospitais a funcionarem pior não se tenha apercebido que 2015 é, por decreto da União Europeia, o Ano Europeu do Desenvolvimento. É verdade, quem diria! Segundo foi decretado, uma acção dirigida “ao nosso mundo, à nossa dignidade, ao nosso futuro. Uma oportunidade para sensibilizar os cidadãos europeus [sobre o “que se passa fora das suas fronteiras”] para as políticas de desenvolvimento da União Europeia e para o seu papel enquanto um dos agentes mundiais na luta contra a pobreza”.

A Decisão n.º 472/2014/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Abril de 2014 faz o role das referências históricas e das intenções: a tradição do “combate à pobreza à escala mundial”; a aplicação da declaração de 2012 para “a realização do ser humano em todas as suas dimensões”; a continuação da “ajuda pública ao desenvolvimento”; a aplicação de “Europa 2020: estratégia para o crescimento inteligente, sustentável e inclusivo”; apoio aos “Objectivos de Desenvolvimento do Milénio”, definido em 2000 e avaliado em 2015; a constatação de que “os países desenvolvidos e as economias emergentes contribuem para a maior parte do produto interno bruto mundial”; a constatação de um conjunto de situações dramáticas: “1300 milhões de pessoas vivem ainda em condições de pobreza extrema (…) as desigualdades dentro dos países aumentaram na maioria das regiões do mundo (…) ambiente natural (…) submetido a uma pressão crescente”; a coexistência com algumas iniciativas como a Exposição Universal «Alimentar o Planeta: Energia para a Vida»; “sensibilizar para todas as formas de discriminação de género”; lançamento de um inquérito específico do Eurobarómetro; descentralizar nos Estados e instituições locais as iniciativas a promover, podendo a União “ adoptar medidas, em conformidade com o princípio de subsidiariedade”.

Sendo inequívoco o interesse de iniciativas que melhorem a percepção social do desenvolvimento e que promova este, o que constatamos é estarmos perante uma iniciativa essencialmente virada para o exterior, apesar da grave crise que a Europa tem atravessado nos últimos anos, do brutal agravamento das desigualdades económicas ‒ e estas são uma negação do próprio conceito de «desenvolvimento» ‒, da pobreza que grassa em várias regiões da Europa. Uma iniciativa com um fosso abismal entre as boas intenções jurídico-simbólicas e a realidade social. Finalmente, uma diligência com o aconchego do proclamado amor entre os povos, mas profundamente contrário à história da cooperação e desenvolvimento.

Com efeito, num estudo detalhado sobre a problemática do desenvolvimento, chamámos a atenção para três factos:

  • Há forte probabilidade da configuração jurídico-institucional da “política do desenvolvimento”, iniciada depois da II guerra mundial e que se prolonga até aos dias de hoje, ser uma adaptação formal e simbólica das práticas coloniais de dominação do mundo ao novo contexto político-social.
  • A “cooperação para o desenvolvimento” deu lugar a toda uma “indústria do desenvolvimento”, cujos principais beneficiários são os países já desenvolvidos, neste caso da Europa. A denúncia amarga de Stiglitz está à vista de todos: “Destrói-se, estropia-se, mata-se antes... enviam-se alimentos e medicamentos depois”.
  • A “cooperação” pode ser inimiga do “desenvolvimento” porque passa por uma ingerência na dinâmica dos países “auxiliados”, porque é acompanhada de uma errada concepção do que é colocar a economia ao serviço do bem-estar dos povos e da forma de a promover, porque o que orienta a “cooperação”, apesar do abnegado esforço e sentido de missão de alguns, são os interesses económico-financeiros dos países já desenvolvidos. A experiência comprova estas opções: “Muitos dos programas e projectos têm contribuído apenas para tornar ainda mais difícil a vida daqueles a quem se pretende ajudar” (MIlando).

Os documentos institucionais valem pelo que dizem, e pelo que não dizem. Frequentemente as omissões são o mais importante. Neste caso também assim é. Porque não há uma palavra sobre dois pilares importantes da “política de cooperação para o desenvolvimento”: o combate à corrupção e o combate aos paraísos fiscais e judiciários.

Primeiro algumas constatações simples, depois alguns dados:

  • Não há corrompido sem corruptor. Se o índice de percepção da corrupção da Transparência Internacional mostra inequivocamente que os países onde impera a corrupção são subdesenvolvidos, nada diz sobre os corruptores. Melhor, porque muitos dos interrogados na construção do índice são instituições que se relacionam economicamente com esses países, talvez indicie que aqueles estão nos outros países e que conhecem a situação. O conhecimento dos “esquemas” pode indiciar conhecê-los, permite supor que muitos são aproveitados para negócios lucrativos e protegidos, em comparação com os que não usam tais métodos. Na concorrência empresarial para conquista de posições nos mercados, as empresas que recorrem a processos fraudulentos têm melhor posicionamento no mercado. Logo, não será descabido admitir que uma significativa margem das instituições que são cúmplices da degradação ética nos países desenvolvidos se situa na Europa.
  • É nas economias desenvolvidas que está o epicentro das multinacionais. Uma elevada percentagem das trocas internacionais registadas faz-se entre filiais, declaradas ou não, do mesmo grupo. A manipulação dos preços de transferência, permitindo transitar lucros de uns locais para os outros, é hoje uma das fraudes, frequentemente legais, mais importantes. Como nos relata Shaxson “estima-se que a manipulação dos preços de transferência pelas empresas custe aos países em desenvolvimento, por ano, cerca de 160 mil milhões de dólares”.
  • Segundo a Global Integrity os fluxos ilícitos que em média saem anualmente de África, durante as três últimas décadas, montam a 50.000 milhões de dólares. Os países desenvolvidos, nomeadamente europeus, possuidores de paraísos fiscais e judiciários, recebem mais do que aquilo que pagam.

Depois, uma conclusão simples: se a Europa quer ajudar os países subdesenvolvidos, e simultaneamente recuperar a sua tradição humanista e filosófica, deve tudo fazer, começando por dar o exemplo, para aumentar a ética nos negócios e fluxos de capitais. O fim dos seus offshores seria uma pedra fundamental deste edifício.