Óscar Afonso, OBEGEF
A corrupção, o branqueamento de capitais e a fraude fiscal conduzem necessariamente ao enfraquecimento dos laços de solidariedade e de respeito mútuo entre cidadãos e entre estes e seus representantes
...
Respeitáveis comentadores políticos alertam que a prisão de um ex-primeiro ministro pode colocar em risco o Estado de Direito. Essa constatação remete para uma aparente contradição: se, como parece, está em causa o combate à corrupção, ao branqueamento de capitais e à fraude fiscal, como pode tal colocar em causa o Estado de Direito? A luta contra comportamentos desviantes não fortalece, pelo contrário, o Estado de Direito?
A meu ver, numa visão distorcida da democracia e dos ideais republicanos, a conduta de tais comentadores só pode constituir uma reacção à necessidade de manutenção do status vigente, já que, efectivamente, o combate à corrupção, ao branqueamento de capitais e à fraude fiscal, mesmo que no imediato possa gerar dissabores políticos, tende a fortalecer o Estado de Direito e, assim, a proteger a pessoa humana.
A democracia, instrumento de realização de valores fundamentais à convivência social, não encontra na corrupção, no branqueamento de capitais e na fraude fiscal obstáculos à sua efectiva consagração? Essas condutas desviantes não criam um distanciamento entre representantes e representados? Não geram desconfiança, ausência de legitimidade e enfraquecimento do próprio ideário impulsionador do sistema democrático? E a impunidade não se intromete como uma raíz inextirpável, criando na consciência colectiva a percepção social de que, se os poderosos não são reprimidos, vale tudo? Esses comportamentos desviantes não conduzem então a uma sociedade débil que vai perdendo consciência ética no que respeita aos valores inerentes ao Estado de Direito? Na eventualidade de tais comportamentos desviantes terem sido perpetrados por um ex-primeiro ministro a gravidade não exige acção? A associação de poderosos a “casos” não foi contribuindo para a abstenção dos cidadãos no que toca à participação política, diminuindo, em um círculo vicioso, o poder transformador da democracia? O desinteresse político não mitiga e reduz o grau de participação popular na formação de governos e no processo políticos, e assim a legitimidade do próprio regime? E é isso que se deseja?
A corrupção, o branqueamento de capitais e a fraude fiscal conduzem necessariamente ao enfraquecimento dos laços de solidariedade e de respeito mútuo entre cidadãos e entre estes e seus representantes, porque, aos olhos dos eleitores, qualquer um passa a ser potencial corrupto, o que estabelece um clima de passividade face à coisa pública e às decisões políticas. Esses comportamentos desviantes são efectivamente um obstáculos ao desenvolvimento de uma sociedade mais ética, e o não combate, de modo efectivo e contínuo, conduz, por cansaço, ao enfraquecimento da democracia. E, numa democracia fragilizada e enfraquecida, é impossível alcançar a finalidade do Estado de Direito que pretende garantir e concretizar os valores da liberdade, da justiça e da solidariedade.
A república não é o regime político em que os executantes de funções políticas, sejam executivas ou legislativas, representam o povo e decidem com responsabilidade em seu nome? Se sim, então quem exerce um cargo público delegado pela soberania popular não tem obrigatoriamente de ser responsável nesse exercício, já que ninguém desempenha funções políticas por direito próprio? Participar no processo político em nome do povo não é incompatível com o apoderamento de posições públicas em benefício exclusiva ou parcialmente privado? Sendo assim, a ausência de combate aos comportamentos desviantes não abre espaço à impunidade, que é o inverso da responsabilidade?
E não é também importante realçar a correlação entre dignidade da pessoa humana e corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal? Esses comportamentos desviantes conduzem ao desvio de recursos financeiros destinados à redistribuição de rendimento para melhoria do bem-estar social, impedindo, pois, a alocação de recursos disponíveis para prestações sociais da responsabilidade do Estado. Por conseguinte, esses comportamentos desprezam os mais pobres e enfraquecidos, o que inverte a óptica segundo a qual o poder deveria garantir a prevalência do ser sobre o ter.
A menos que se seja hipócrita, quem defende os ideais da democracia e os valores republicanos só pode estar num dos lados: o do combate impiedoso à corrupção, ao branqueamento de capitais e à fraude fiscal, independentemente dos envolvidos ou, diria mais, sobretudo quando estão em causa poderosos.