André Vieira de Castro, Visão on line,

É na “corrupção” e nos “relatórios fraudulentos” que temos incidentes que provocam sismos de magnitude elevada.

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A propósito do segredo de justiça, da presunção da inocência, dos indícios e das provas, da sugestão mediática e da eficácia dos meios de investigação disponíveis.

Nota prévia: não sou jurista nem conhecedor no detalhe dos casos abaixo referidos, pelo que me penitencio desde já por eventuais imprecisões jurídicas e/ou factuais. Parecem-me que, se existirem, são irrelevantes para a reflexão convocada.

Este ano de 2014 será um ano “vintage” para quem estuda o fenómeno da fraude, da corrupção, do conflito de interesses, do suborno imediato, do suborno com pagamento diferido, de relatórios financeiros fraudulentos e de tantos outros fenómenos similares que compõem a Árvore da Fraude Organizacional.

A referida Árvore da Fraude divide-se num primeiro nível entre Corrupção, Apropriação Indevida de Ativos e Relatórios Fraudulentos.

A “apropriação indevida de ativos” apresenta frequências de ocorrência elevadas, ainda que de impacto mitigado. Aqui englobam-se casos de roubo de dinheiro, de existências, utilização de empresas fachada para receber e pagar faturas de suposta aquisição de bens ou serviços, compras pessoais disfarçadas de aquisições para a empresa (por forma a que esta suporte o custo), faturas de representação sobreavaliadas ou fictícias, falsificação de salários, de comissões, utilização de empregados-fantasma (por forma a que lhes seja processado uma remuneração e permitir o desembolso do dinheiro), falsas anulações de venda (e por isso tanto cuidado no retalho em que apenas o chefe de turno possa anular vendas nos terminais de pagamento e faturação), etc…

O número de ocorrências deste tipo é elevadíssimo. Algumas são fáceis de detetar, até pela auditoria interna, outras nem tanto. Acabam por descobrir-se por uma oportuna dica de um colega ou pela vulgar manifestação de sinais exteriores de riqueza. Este tipo de casos tende a ficar na confidencialidade da empresa, para evitar contaminação pública, para impedir que se crie a perceção de fragilidade de processos, o que pode ser visto como oportunidade por outros. Mas todos temos conhecimento de vários “desfalques”, de cheques endossados, de valores recebidos de clientes e não reportados internamente e outro tipo de “artimanhas”.

Mas é na “corrupção” e nos “relatórios fraudulentos” que temos incidentes que provocam sismos de magnitude elevada.

E é aqui que se albergam os casos mais mediáticos desta eterna silly season… vejamos alguns deles e reparemos num ou noutro detalhe…

Carlos Lopes: ex-deputado do Partido Socialista e funcionário na Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos foi condenado a 5 anos de prisão (suspensa) por um crime de corrupção passiva e outro de peculato, ambos na forma continuada, e de um crime de falsificação. Decisão da Relação de Coimbra. Situações de financiamento partidário ilícito, viciação das contas municipais e desvios de fundos da câmara para a campanha eleitoral do PS. O condenado fazia valer-se do seu estatuto parlamentar para conseguir financiamento para o seu partido em troca de favores futuros de que, nessa condição, estavam em condições de assegurar. A desnatação do erário público em favor de um interesse privado, ainda que neste caso um interesse coletivo (por beneficiar em última ratio o seu partido político), tudo parece ter valido. Promessas de favores futuros (suborno invertido, na árvore da fraude classificada como extorsão económica ou suborno por solicitação) e conflito de interesses (serviços adjudicados pela Câmara pretensamente para seu benefício, mas que afinal seriam para prestar serviços de campanha política).

Banco Finantia: O Banco português e alguns dos seus mais proeminentes gestores (nomeadamente os seus então administradores António Guerreiro, Pedro Santos e Luísa Antas), foram condenados pelo Banco de Portugal a contraordenações superiores a 3.000.000 €. Excluindo algumas minudências, as acusações referem que os acusados, a título doloso, falsificaram a contabilidade e inobservaram regras contabilísticas, com prejuízos graves para o bom conhecimento da situação patrimonial e financeira das entidades envolvidas. São ainda acusados, supletivamente, de prestar, em três circunstâncias distintas, falsas informações ao supervisor. Na substância dos factos está sobretudo a constituição, em 2007, de uma sociedade WWI, com sede nas ilhas Caimão, permitindo aí acomodar (e ocultar!) avultadas perdas geradas no Finantia.

Banco BES: sobre este exclusivo caso há e haverá muito a dizer. Talvez para sempre. Até porque se adivinha forte litigância. Há de tudo. Até uma inédita resolução que cindiu um Banco num final de semana. Temos alegados relatórios fraudulentos, temos ocultação de ativos, subavaliação de ativos, sobreavaliação de ativos (é mesmo assim, temos uma coisa e o seu contrário), créditos concedidos a filiais em montantes hereges e totalmente fora de controlo, temos encobrimento de comissões de terceiros, temos gestão discricionária de carteiras de investimento sem mandato, temos cartas de conforto emitidas ao Governo da Venezuela apenas pelo então Presidente do Banco (a avalizar a posteriori o bom pagamento de obrigações de uma subsidiária do grupo). Temos de tudo. É um “Toca a Todos” bancário. A litigância adivinha-se feroz. As acusações não estão (todas) formalizadas, algumas nem sequer apontadas publicamente, mas será sem dúvida um processo-escola no que à fraude nos seus 3 ramos da árvore diz respeito. Um compêndio, portanto.

Caso Marquês: “à mulher de César não basta ser séria!” – seria um bom mote para este caso. Porque aqui, mais que refletir sobre o caso em si, pretendo refletir sobre o bom senso coletivo acerca do sistema judicial.

A histeria que se abateu sobre este caso, ajudada pela estratégia de vitimização adotada (legitimamente) pelo principal arguido José Sócrates, provoca os tradicionais maniqueísmos. Uns defendem acerrimamente o princípio da presunção da inocência, confundindo um princípio basilar do direito com aquilo que possa ser a opinião mais ou menos fundamentada de cada um. Tão legítima quanto a estratégia de defesa. Muitas têm sido as vozes que têm contundentemente criticado a aplicação da medida de coação mais gravosa, a prisão preventiva. Curiosamente não parece haver ninguém que ouse sugerir que a aplicação de uma medida de coação fosse em si mesmo um erro (até porque nesta fase do processo seria tecnicamente impossível a sua não aplicação).

E portanto, sendo unânime que uma medida de coação urgia ser aplicada, só estaria em causa a escolha entre elas.

Mas o que parece não ter mesmo adeptos é o facto de todos poderem ter razão. Isto é, é possível que subsistam todos os fundamentos indiciários para promover uma prisão preventiva e isso não implicar necessariamente que os indícios se verifiquem e que não possa acontecer até no limite uma não pronunciação da acusação.

Porque coloquemo-nos no lugar de quem tem que decidir uma medida de coação, e especificamente no caso José Sócrates:

  • O arguido regressaria a Portugal numa quinta-feira, mas já depois do check-in resolve suspender o regresso;
  • Isto à mesma hora (+-) em que o seu motorista e o seu amigo de todas as horas eram detidos em Portugal – o que indica rápida comunicação entre os arguidos;
  • No dia seguinte são removidos da residência do arguido documentos e equipamentos informáticos, alegadamente por uma colaboradora dele;
  • O processo de investigação, iniciado por uma denúncia – obrigatória por lei – bancária, demonstrou vários movimentos financeiros de expressão não condizente com a situação patrimonial conhecida do arguido;
  • Acresce que o mesmo, por ser uma pessoa politicamente exposta, já se tinha referido contraditoriamente a alguns dos ativos que ora possuía, ora arrendava, ora herdava;
  • Entretanto, é também sabido que o arguido tinha viagem para o Brasil marcada para 2 dias depois;
  • O arguido regressa a Portugal num voo tardio, enquanto pessoas a ele próximas estavam detidas para interrogatório.

Eu pergunto-me: independentemente de nenhuma das suspeitas vir a ser provada, ou até que se demonstre terem as mais cândidas das explicações, há alguém que duvide da lógica precedente à detenção do arguido para interrogatório?!

Repito: perante os indícios, perante a possibilidade de interferência com eventuais provas, com eventuais testemunhas, não seria um erro judicial de monta permitir que o arguido ficasse em liberdade, ainda que condicionada?

A presunção da inocência, tão mencionada estes dias, não fica em nada prejudicada por uma saudável investigação. Aliás, só sairá reforçada, existindo, porque com todos os meios de prova ao dispor, a verdade factual não terá tanta facilidade em escapar-se… para as ilhas Caimão!

Acabo como comecei…

Mas afinal… quantos braços tem um polvo?!