José António Moreira, Visão on line,

O caso BES está aí, longe de ser compreendido pelo cidadão comum, mesmo por alguém que “perceba de números”.
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O caso BES está aí, longe de ser compreendido pelo cidadão comum, mesmo por alguém que “perceba de números”. Não se entende como é que tantos foram enganados durante tanto tempo. Muito em especial, não se percebe como é que o avolumar das situações de risco escaparam aos auditores externos (dos internos nem vale a pena falar).

O senhor bastonário da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (OROC), em entrevista ao Jornal de Negócios (13.10.14), refere que “… o que provavelmente terá acontecido é que [os auditores da KPMG, no caso BES] não tinham a expetativa que a dimensão do problema fosse tão grave quanto o que veio a acontecer.” Significa, pois, que tinham conhecimento da existência de um problema que, no entanto, no parecer de revisão às contas consolidadas de 2012 não foi referido e no das contas de 2013 também não. É certo que neste último parecer, existe uma “ênfase” (nome técnico para uma chamada de atenção “leve”) que remete para o relatório da empresa (Nota 46), onde o BES explica que vendia dívida de empresas do grupo a clientes de retalho, mas que estava tudo bem e provisionado (para acautelar qualquer imprevisto em termos de solvabilidade dessas empresas). É tudo o que se consegue encontrar sobre o dito problema (que agora se concebe como um problema, mas que ‘a priori’ nenhum leitor do relatório, por mais desconfiado que fosse, conseguiria perceber como tal a partir do texto da referida ênfase).

Mas o senhor bastonário foi mais longe, colocando o ónus da não perceção da existência de um problema no BES nos utilizadores da informação auditada. Insinuando que a mencionada ênfase tinha sido o alerta feito pela KPMG para o dito problema, refere logo a seguir na sua entrevista que “… há casos em que essa leitura [do parecer do auditor] seguramente não é feita com a devida atenção, porque se o fosse, provavelmente alguns dos pontos que temos encontrado nos últimos tempos poderiam ter sido, efetivamente, mais antecipados.”

Desculpe senhor bastonário mas há algo que escapa ao nosso entendimento. Sendo um parecer de revisão um conjunto de frases estandardizadas, que se repetem todos os anos e são transversais a todos os auditores, a única verdadeira informação que pode alertar para a existência de problemas é a que consta das “reservas” (uma chamada de atenção “grave”) ou das “ênfases”. Das primeiras não há sinal nos pareceres relativos ao BES, das segundas apenas a que acima se referiu. Onde está, pois, a deficiente leitura do parecer de revisão? O que será que escapou aos utilizadores da informação, ao mercado, para não se terem apercebido do problema? Apenas uma coisa, que esse problema tivesse efetivamente sido reportado.

É um facto que a literatura da especialidade documenta ser o parecer de auditoria (“revisão” em Portugal) – em suma, as reservas e ênfases que possa conter – o resultado da negociação entre o auditor e a empresa, resultando da relação de forças existente. De um lado a empresa, que não deseja ver refletidos no parecer alertas sobre a sua real situação; do outro lado o auditor, na sua pseudo independência, que deseja evitar no futuro vir a ser responsabilizado por não ter reportado situações que colocavam em causa a “imagem fiel e verdadeira” da empresa que a informação financeira deveria refletir. Em tal contexto, a dita ênfase poderá ser vista como o alijar de responsabilidade da parte do auditor, servindo também os interesses da empresa devido à respetiva brandura e caráter inofensivo. Seria a isto que o senhor bastonário se referia quando diz que o mercado não soube ler o parecer? Muito provavelmente era. Espera-se que as autoridades competentes possam esclarecer até que ponto tal mensagem não constituiu, antes do mais, um contributo para o encobrimento do problema.

O Banco de Portugal parece estar interessado em reabrir a discussão sobre a independência dos auditores. Não se afigura fácil perceber como será assegurada. Como pode um auditor, como a KPMG no caso do BES, ser verdadeiramente independente se um parecer “não limpo” (com reservas) implicaria perder um contrato que em 2013 rendeu “fees” em montante superior a 5 milhões de euros?