Aurora Teixeira, Visão on line,

“A história mostra que quando emerge um conflito entre a ética e a economia, a vitória é sempre da economia.” (B. R. Ambedkar - jurista Indiano, n. 1891 – m. 1956)
A divulgação do parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) sobre um modelo de deliberação para o financiamento do custo dos medicamentos gerou um aceso debate sobre se deve ou não ser racionado o acesso a tratamentos mais caros para pessoas com cancro, Sida e doenças reumáticas.
De um lado constam os ‘indignados’ que denunciam se estar perante um “absurdo moral e constitucional” (António Arnaut), consubstanciado num parecer que é “redutor e desumano” refletindo a ideia de que “o mais barato é o doente morto” (José Manuel Silva - Bastonário da Ordem dos Médicos), redigido por um “Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Morte” (Manuel Vilas Boas - porta-voz do Movimento dos Utentes do Serviço Nacional de Saúde).
Do outro posicionam-se os ‘racionalistas’, alertando para “o simplismo primário de muitas ... reacções [que] não quer[em] ver o óbvio... [de que] os recursos são limitados” (Francisco Sarsfield Cabral), sublinhando que “não se trata de uma questão de racionamento do acesso aos cuidados de saúde, mas sim de admitir que os aspetos económicos têm de ser tidos em conta na tomada de decisões” (Francisco Ramos - Presidente do conselho de administração do Instituto Português de Oncologia de Lisboa), ou mesmo que “racionalizar é completamente diferente de cortar” (Helena Gervásio - do Colégio da Especialidade de Oncologia Médica, da Ordem dos Médicos), sendo imperativo a adopção de “técnicas de avaliação económica” (Pedro Pita Barros), numa lógica custo-benefício/custo de oportunidade, enquanto mecanismo de decisão.
Sendo eu economista de formação, o que mais me intrigou no parecer da Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida foi o excesso de linguagem e ‘racionalidade’ económica inerente ao texto – parecia ter sido redigido por um economista e não por médicos e profissionais ligados às ciências da vida, membros de uma comissão de ética.
A lógica do custo-benefício no domínio das ciências da vida (assim como em outras importantes áreas sociais) não é, no meu entender, um conceito ou mecanismo de decisão que generalizado sem mais. Senão, vejamos. O recurso à lógica do custo-benefício pressupõe que:
(1) existe uma forte presunção de que uma ação não deve ser realizada a não ser que os benefícios excedam os custos.
(2) por forma a determinar se os benefícios excedem os custos, é desejável que se exprimam todos os custos e benefícios num denominador ou escala comum, de modo a que sejam comparáveis, ainda que alguns benefícios e custos não sejam transacionáveis no mercado e, por isso, não tenham valores expressos em euros.
No contexto da teoria formal da ética, isto é, do estudo de que ações são moralmente adequadas empreender, entendo que:
(1) existem fortes razões para obstar à monetização de benefícios e custos não transacionáveis no mercado: existem ‘coisas’ que normalmente não são compradas/vendidas nos mercados – a vida humana! – donde não são susceptíveis de ter um preço em euros.
(2) em diversas areas, nomeadamente a da saúde, podem ocorrer casos em que uma decisão pode ser a correta ainda que os benefícios não compensem os custos: ‘o médico fazer tudo que está ao seu alcance e utilizar os medicamentos mais adequados e a melhor tecnologia ao seu dispor, independentemente do seu custo, para salvar/manter/prolongar a vida do seu paciente’.
Se é para se usar a argumentação ‘lógica e racional’ do custo de oportunidade associado ao “tratamento envolvido”, apontando-se que “ ... os recursos usados no pagar desse custo poderiam ser utilizados, por exemplo, em prevenção de problemas cardiológicos, ou rastreio de cancro” (Pedro Pita Barros), é do meu ponto de vista inteletualmente mais rigoroso e honesto que não confine essa argumentação às alternativas dentro do setor da saúde (‘menos tratamentos a pacientes com Sida por contrapartida a mais recursos afetos a pacientes com problemas cardiológicos’). Antes, é imperativo que se extravase a noção do custo de oportunidade e análise custo-benefício para outros setores de atividade. Que tal menores gastos com submarinos e tanques XPTO para a Defesa e/ou menos assessores, motoristas e carros de alta cilindrada para os ministeriais e mais recursos para a saúde e para a preservação da vida humana com a dignidade que todos os cidadãos merecem?!
Tenho para mim presente a máxima de Albert Schweitzer, filósofo e médico alemão, que refere que a “Ética é nada mais do que o respeito profundo pela vida”, não devendo por isso mudar em nome de uma qualquer conjuntura económica ou política de austeridade.