Luís Torgo, Visão on line,

É sobejamente conhecida a vertigem legisladora das nossas autoridades. Descobriu-se um problema na sociedade com um potencial de atração para a fraude? Solução: cobrir a "área" com uma boa dezena de regulamentações, novas leis, novas exigências burocráticas, e por aí fora. Fiscalização da aplicação das mesmas? Bom, depois vê-se... Resultado? Bom, é esse o tópico deste pequeno texto, mas se estão com pressa posso resumi-lo numa palavra: asfixia.
Este texto encerra em si mesmo um grande perigo, pois poderá achar-se que defendo a desregulamentação e logo o facilitar da fraude. Longe disso, obviamente. Mas como diz o ditado popular, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Claramente, a solução atual também não é boa, ainda mais quando acompanhada de uma deficiente fiscalização. Aliás uma das mensagens que aqui procuro fazer passar é exatamente a de que a solução atual tem um claro efeito bloqueador de quem pretende fazer o seu trabalho. De facto, cada vez mais pessoas olham para a nossa máquina estatal como um conjunto de agentes "dificultadores" da nossa vida. A sensação que se fica cada vez que se tem que dialogar com alguns serviços é a de que se houver alguma maneira de complicar a nossa vida, então certamente eles tratarão de a encontrar. Obviamente, como qualquer afirmação genérica, está aqui muita injustiça para com funcionários que zelosamente se limitam a cumprir as suas obrigações. Não são eles o meu alvo, embora uma cura de bom senso não fizesse nada mal a muitos deles. Os meus alvos são de facto os responsáveis que criam as normas pelas quais eles se têm que reger − são estes os verdadeiros "dificultadores". Na sua voracidade legisladora, certamente imbuída da bondade de precaver fraudes e afins, têm frequentemente o efeito perverso de causar um bloqueio da sociedade que em vez de ser ágil e dinâmica, se torna numa massa amorfa atada a uma teia de regulamentações e leis. Bom e qual a solução então? Não sendo de todo um especialista na área, muito longe disso, julgo que uma melhoria significativa deste cenário seria conseguida se se investisse um pouco menos em legisladores e se desviasse o dinheiro para a fiscalização e formação adequada dos serviços, nomeadamente para aprenderem a usar um remédio milagroso de muitos problemas − bom senso. Querem um exemplo de falta de bom senso? Aqui vai uma pequena história que ilustra bem ao que chegamos.
Na minha atividade de docência e investigação tenho frequentemente que comprar livros académicos, coisa que normalmente faço usando verbas atribuídas a projetos de investigação que consegui conquistar como resultado do meu trabalho, e que são geridos pelas instituições a que estou associado. Como é óbvio, sendo eu responsável pelos mesmos, tenho todo o interesse em gastar o mínimo de dinheiro nestas aquisições, pois menos custos normalmente representam mais livros. Por razões económicas e também razões práticas a aquisição passa normalmente pela mega-livraria Amazon. Aqui quase tudo se encontra a bom preço e passado 2-3 dias normalmente tenho os livros em cima da minha secretária, prontos para o meu trabalho. A compra “online” nesta “loja” obriga à utilização de cartão de crédito. Por razões que a razão desconhece, mas talvez tenha a ver mais uma vez com alguma fobia controladora de possíveis fraudes, as instituições académicas a que estou associado não possuem cartão de crédito. Com o objetivo de agilizar a ciência que não se compadece com este mundo caracol, os investigadores frequentemente sentem-se tentados a comprar os livros usando o seu cartão de crédito na expetativa de posterior reembolso. Erro crasso! Quando chega a altura do reembolso começa tipicamente o pesadelo. Poderão os leitores pensar que bastaria entregar o recibo da compra, mostrar o livro e adicionar o extrato do cartão de crédito onde se indique o pagamento do montante à companhia. Puro engano. Embora para qualquer comum mortal com um mínimo de bom senso, esses documentos inequivocamente provem que a despesa foi efetuada, a máquina burocrática tens as suas regras e não quer saber de mais nada a não ser essas regras. Como é lógico e natural, a livraria emite um recibo em nome da pessoa que lhe comprou o livro. E aí começa o problema, o recibo tem que vir em nome da instituição e não em nome do investigador. E não interessa que o investigador comprove o pagamento, e que o mesmo só tenha sido efetuado porque a instituição não tem meios para isso, ou que existam documentos a comprovar que o investigador pertence à instituição – não tem o NIF da instituição, não é reembolsável! Portanto, como bons portugueses, lá vamos nós fazer pequenas “fraudes” do género meter o NIF da instituição no campo da morada do formulário de emissão do recibo. Se aparece lá o número mágico, mesmo que na morada, então a máquina burocrática já pode respirar fundo, saciada com os belos algarismos que a libertam de qualquer ónus de culpa. Aos olhos de qualquer comum mortal isto só tem uma palavra – ridículo. O tempo e dinheiro que as organizações e as pessoas perdem com estes pequenos nadas é absurdo. E o problema é que isto tipicamente leva ao desperdício. Da próxima vez o investigador não está para se chatear e pede para ser a instituição a comprar ela própria o livro, com todo o desperdício de tempo e dinheiro que isso acarreta. Este é, obviamente um pequeno exemplo, mas ele ilustra muitos dos problemas com que as pessoas se deparam na sua inevitável coabitação com estas organizações “controleiras”. Coisas muito semelhantes ocorrem em aquisições de outros bens que tipicamente têm que ser realizadas através de empresas creditadas nas chamadas centrais de compras do estado, frequentemente por valores muito mais altos do que se conseguiria obter se se deixasse funcionar o mercado livremente, e coisas por aí fora. Tudo regras certamente criadas por razões muito meritórias e destinadas a evitar fraudes. O problema é o resultado disto tudo – desperdício e mais desperdício, ineficiências e mais ineficiências, e assim andamos entretidos. Dir-me-ão: é chato o justo pagar pelo pecador, mas são os custos a pagar para evitar a fraude. Lamento, mas não compro isso assim tão facilmente. Primeiro, não me parece que o país esteja assim tão isento de fraude, mas depois, e principalmente, porque há outras formas de agir, e nem precisamos de inventar nada de novo, há exemplos de outros países que podemos copiar onde a burocracia não é o pesadelo a que chegamos. Por isso digo, cuidado com os "dificultadores"! Mas atenção, do facilitismo ao laxismo e à fraude também se vai num instante! No entanto, a solução de matar o doente com a cura também não me parece muito boa para o País, e não, não estou a mandar nenhuma indireta às atuais políticas económicas, mas se calhar até dá para enfiar o barrete...
P.S.: Já depois de escrita esta pequena crónica chegou-me um editorial da instituição de investigação a que pertenço que ilustra de forma perfeita o que está a acontecer à ciência em Portugal com esta nova fobia “dificultadora”. Aqui fica o endereço para se entreterem com uma outra visão do problema: http://bip.inescporto.pt/127/editorial.html.