António João Maia, Visão on line,

Há dias um amigo meu que exerce funções profissionais num serviço público, dizia-me, com grande indignação, que no contexto de uma reunião de trabalho que tinha acabado do ter com o responsável máximo pelo seu serviço, aquele assumira, com toda a naturalidade e convicção, que, por uma questão da dignidade da função, considerava normal e aceitável que o diretor de uma qualquer instituição pública procedesse, a cada três anos, à aquisição de mobiliário novo para o seu gabinete e de um automóvel de serviço para o exercício da sua função profissional.
Naturalmente que pela sua natureza, pelo contexto actual de crise em que nos encontramos mergulhados e sobretudo pelos sinais de indignação evidenciados pelo meu amigo, este apontamento serviu de base para o diálogo que estabelecemos nos momentos seguintes, e, depois disso, para uma reflexão que fiz e que agora partilho através destas linhas.
Em primeiro lugar, concluímos que a convicção com que a afirmação tinha sido proferida se ficara muito provavelmente a dever ao facto de o seu autor ser, ele próprio, diretor de um serviço público.
Em segundo lugar, concordámos que a argumentação que fora utilizada, ou seja a dignidade da função, era indiciadora das estratégias, das opções e sobretudo das lógicas de gestão que provavelmente implementara nas diversas entidades da Administração Pública onde tinha exercido funções similares.
Depois verificámos também que o período invocado, de três anos, apresenta uma correspondência direta com a duração média de uma comissão de serviço em cargos de direcção.
Neste sentido, concluímos que a mensagem passada não significaria muito mais do que assumir que cada novo director tem uma espécie de direito natural a mudar o equipamento todo do seu gabinete de trabalho, incluindo o automóvel, aquando do início do exercício de tais funções, como se porventura se sentisse ou ficasse menorizado pelo facto de utilizar os equipamentos provenientes do seu ou da sua antecessora, nomeadamente quando em perfeitas condições de utilização. Mais, aquela afirmação significa também que mesmo nos casos de recondução, e sempre por uma questão de dignidade da função, poderá o director reconduzido sentir-se igualmente legitimado a substituir todo aquele equipamento por outro novo.
Obviamente que nesta nossa reflexão não está, nem poderia estar, em causa a necessidade de um qualquer director de uma entidade da Administração Pública ter gabinete e automóvel minimamente condignos para executar as suas funções. Porém, defender com toda a naturalidade a possibilidade de mudança de todo esse equipamento com uma frequência trianual, sobretudo por uma questão de dignidade funcional, é que de certa forma nos pareceu estranho, senão mesmo abusivo.
A verdade é que todos temos um pouco a sensação que esta forma de pensar e sobretudo de agir, com traços próximos de um certo novo-riquismo, parece ter norteado a praxis da filosofia da gestão dos organismos da Administração Pública em Portugal ao longo das últimas décadas. E não tem sido só na aquisição dos equipamentos dos gabinetes dos diretores. Tem sido em quase tudo e a todos os níveis da hierarquia dos serviços. Desde as despesas de representação, passando por telemóveis topo de gama e outros serviços de comunicações, até à existência de situações de senhas por participação em cada reunião, para citar apenas os casos mais frequentemente noticiados na imprensa, tudo tem sido possível, sempre com a fundamentação da dignidade da função.
Pobreza de espírito que não permite ver mais longe do que o próprio umbigo…
Não estamos com isto a defender que se volte àquela lógica tão portuguesa que serviu de base a modelos de organização política anteriores, do pobrezinhos mas dignos ou mesmo do pobres mas honrados, nem sequer à filosofia que a dada altura se introduziu nos serviços públicos do a bem da nação, até porque nos parece que com esses estilos não se pretendia muito mais do que manter as pessoas, os serviços públicos e a própria sociedade envolta numa espécie de letargia, sempre inibidora de grandes rasgos de inovação.
Porém, parece-nos que a história há-de registar que nas últimas décadas se caiu num extremo oposto, marcado por uma opulência desmesurada e até estranha, sobretudo quando olhada daqui, destes momentos de crise profunda que atravessamos, em que nos preparamos para pagar (e de que maneira) o valor da nossa (leia-se de alguns) dignidade.
Em suma, julgo que passámos de um modelo de sociedade acanhada, gerida segundo a lógica do pobre, mas digno, para um paradigma exactamente oposto, de uma sociedade com um modelo filosófico associado ao digno, mas pobre, dos nossos dias.
Neste contexto, importa naturalmente encontrar resposta para questões como: Qual o valor que tanta dignidade acrescentou aos serviços da Administração Pública? E sobretudo qual o custo de toda essa dignidade?
Estou em crer que o futuro há-de permitir aclarar estas e outras questões…
Obviamente que não se sugere, nem é esse o nosso propósito, que o problema do nosso país passe ou esteja dependente só destas questões. Porém a atitude que se deixa evidenciar através de afirmações como a que motivou esta reflexão é que de alguma maneira nos deve fazer reflectir sobre a nossa postura colectiva perante a vida.
Fomos sempre assim ao longo da história. Ostentação, a atitude sempre presente. Porém uma ostentação na maior parte das vezes com pouco, ou mesmo com nada, de concreto que a sustentasse.