Carlos Pimenta, Visão on line,
1. Enriquecer é bom para quem o consegue, seja uma pessoa ou uma sociedade. A riqueza não dá a felicidade mas ajuda muito. A riqueza social, vulgo desenvolvimento, não é a única vertente de um progresso humano sustentado, mas ajuda muito.
O enriquecimento de uns pode, contudo, significar o empobrecimento de outros. Os recursos são limitados, a liberdade (formal ou de ação) de uns pode ser a sua ausência para outros, a propriedade de uns pode ser a sua inexistência para outros. Acontece todos os dias em todas as sociedades, acontece entre estas quando uns dominam ou colonizam (militarmente ou não) outros povos.
A desigualdade na distribuição da propriedade (o que se possui) e do rendimento (o que se recebe) causa conflitos sociais de vários tipos, desde sempre. É a luta (tensão, angústia, conflito) entre pobres e ricos, em cada sociedade e entre sociedades. Conforme a época histórica, o conhecimento então existente do funcionamento da relação entre os homens, as conceções filosóficas, religiosas, políticas e ideológicas existentes, assim as propostas e as realizações para influenciarem essas desigualdades económicas e sociais.
No último século foram dominantes três posições: (a) a distribuição dos rendimentos e da riqueza deve ser feita de acordo com as necessidades (objetivas) de cada um; (b) as desigualdades sociais são o resultado de uma multiplicidade de fatores que não podem ser totalmente contrariadas sem pôr em causa o modelo de sociedade em que vivemos, mas é possível atenuar as diferenças, impedir as situações mais ultrajantes, gerar um bem-estar coletivo; (c) o fosso entre pobres e ricos é o resultado da dinâmica da economia, sustentáculo de toda a vida social, e não se deve contrariar o funcionamento espontânea dos mercados.
Os ricos e os pobres terão leituras diferentes destas possíveis saídas. Uns privilegiarão a primeira proposta, outros optarão pela última. A segunda pode ser aceite por ambos em gradações diferentes conforme a correlação de forças social e a estrutura classista do poder político.
Não é destas questões que se trata quando se fala do enriquecimento ilícito, mesmo que seja “ilícito” o velho padecer porque não tem dinheiro para cuidar da sua saúde ou milhões de crianças morrerem de fome.
2. Mesmo numa época como a que temos vivido nos últimos trinta anos, em que têm imperado as medidas políticas de agravamento das desigualdades sociais, considera-se que a riqueza deve resultar das atividades de cada um, obedecendo às regras de convivência social estabelecidas pelos usos e costumes, pela moral dominante vigente e pelas leis.
Generalizadamente não é aceite que alguém roube para aumentar o seu património. Também não é aceite, menos generalizadamente, que uma instituição utilize trabalho infantil ou escravo para ter menos encargos e obter maiores lucros no fim do ano. Também não é aceite, muito menos generalizadamente, que alguma pessoa, individual ou coletiva, fuja às suas obrigações fiscais. A lei também não aceita muitos outros comportamentos, mas a forma escondida como se processam, fazem com que não haja uma sensibilidade social para a sua importância: a apropriação indevida de bens feita de forma velada (sem conhecimento do roubado), algumas atividades económicas que não aparecem à luz do dia (do trafego de órgãos humanos à venda de crianças para adoção, do negócio de mercenários à lavagem de dinheiro, da comercialização de peixe capturado ilegalmente à apropriação informática da identidade, entre outros).
Destas atividades veladas apenas uma ou outra é explicitamente rejeitada pelas pessoas: o tráfico de droga, porque destrutura as famílias, ou a corrupção, porque choca ver alguns a engordar à custa dos outros (tanto mais chocante quanto o observador não lucre nada com isso).
As formas de enriquecimento, sem dúvida ilícito, reconhecidas pela generalidade dos cidadãos são muito poucas em relação à imensidão das existentes nos interstícios da nossa sociedade, nas empresas, no Estado, nos organismos internacionais. Bastava que nada disso existisse para que as desigualdades sociais fossem menores, menos injustas.
3. Se estamos perante enriquecimento ilícito porque é que as instituições não previnem e combatem suficientemente tais práticas, porque é que o sistema judicial não atua ou fá-lo em tão pequena escala?
Uma pergunta simples para uma resposta difícil, tantos são os fatores conducentes a tal situação.
Podemos invocar muitas razões: a sociedade prefere ignorar a existência de tais comportamentos (“política de avestruz”); muitas dessas ilicitudes são cometidas por pessoas respeitáveis e bem relacionadas (crime de colarinho branco), logo usufruem de cumplicidades espontâneas; as malhas dessas atuações assumem contornos por vezes muito diversificados; as fraudes foram cometidas com a competência suficiente para contornar a legislação existente; há toda uma organização económica internacional que facilita este tipo de crimes (livre circulação de capitais, offshores, desregulação, enfraquecimento do Estado). Estas e muitas outras razões como o primado do curto prazo sobre o estratégico ou os receios das empresas em macularem a sua imagem.
Mas provavelmente a mais importante é o facto de tais comportamentos serem velados.
Assim sendo o aproveitamento da existência de sinais exteriores de riqueza incompatíveis com as receitas declaradas (fiscalmente) seria uma forma de poder revelar o que estava encoberto. Caso as receitas inexplicadas fossem elucidadas gerariam os comportamentos adequados à sua existência: se fossem receitas não declaradas ao fisco pagaria o diferencial e a multa respectiva pela ausência de declaração; se fossem receitas resultantes de um desfalque, corrupção ou atividades ilegais, seria condenado por essas confessadas situações. Caso não fossem elucidadas haveria uma pena por “enriquecimento ilícito”.
A existência de legislação neste sentido certamente não resolveria o problema, por razões que invocaremos num ponto seguinte e pela forma de organização da sociedade globalizada, mas poderia contribuir para o atenuar. Poderia reduzir o envolvimento em economia informal ou em atividades ilegais. Poderia aumentar o receio de fazer fraude, que, quando individualizada − isto é, sem ser por pertença a redes criminosas − tem frequentemente como motivos pressões de curto prazo inconfessáveis.
Certamente que não seria fácil de investigar, certamente que exigiria um maior número de efetivos ligados à investigação criminal, certamente que exigiria outras leis suscetíveis de complementar esta e estancar os canais de fuga legal, mas, como se costuma dizer, “o ótimo é inimigo do bom”. Muitas poderiam ser as vias da sua deteção, mas provavelmente seria mais fácil denunciar essas situações, com provas concludentes, do que denunciar a corrupção, como hoje se faz. O facto de um cidadão que ganha o salário mínimo nacional comprar para o filho um Ferrari é bem mais visível, demonstrável, que o pagamento de “luvas” a alguém.
Contudo, e apesar das vantagens que poderia trazer, não é deste enriquecimento ilícito que se fala nos projetos de lei de criação do crime de enriquecimento ilícito, e que esta semana tem ocupado a sociedade portuguesa, em resultado da discussão na Assembleia da República.
4. Quando se fala da criminalização do enriquecimento ilícito, quando se propõe esse aditamento ao Código Penal, está-se a pensar nos funcionários públicos, em geral, ou nos titulares de cargos políticos, numa leitura mais restritiva. Não é a economia não registada que está em causa, não é a fraude em geral que se pretende combater, mas apenas um tipo de fraude: a corrupção no Estado.
Apesar do seu âmbito de aplicação ser bastante limitado, apesar de não ser o único tipo de fraude com graves repercussões sociais, estamos perante uma situação grave.
Grave politicamente porque põe em causa a credibilidade dos políticos, das instituições e do sistema democrático – apesar da sua existência, associada à liberdade, tender a reduzir a corrupção. Grave porque frequentemente está associada a outros tipos de crimes, ao funcionamento de associações criminosas. Grave porque amplia as desigualdades sociais, porque gera um ambiente de impunidade e mina as relações éticas vigentes. Grave porque tem impactos desfavoráveis sobre as receitas do Estado, sobre o investimento estrangeiro e o crescimento económico, sobre a qualidade dos serviços públicos, sobre o bem-estar das populações. Grave porque é altamente contagioso, espalhando-se a grande velocidade.
Grave também porque se tem agravado nos últimos trinta anos. Dar voz aos anónimos “mercados” foi, simultaneamente, dar encobrimento a muitos defraudadores. Particularmente grave em Portugal porque a última década tem sido escandalosamente recheada por esse fenómeno. Grave pela existência de corrupção e pela impunidade que tem tido: ausência de condenações, ausência de cumprimento das condenações. De facto, neste país é difícil ser reconhecido como corrupto (ativo ou passivo).
Perante este panorama dramático da corrupção em Portugal, independentemente de qualquer consideração complementar, afinamento da lei ou urgência de outras medidas complementares, é de apoiar uma tal iniciativa legislativa.
5. Quem acompanhou o debate que sobre estas matérias se vem fazendo há alguns anos frequentemente ouviu uma afirmação, feita com aquela convicção que a ignorância de alguns políticos permite: “a proposta de lei de criminalização do enriquecimento ilícito inverte o ónus da prova, logo é inconstitucional.”
Com todo o respeito que essas discussões jurídicas nos merecem, não podemos deixar de manifestar grande indiferença em relação a esse debate.
Em primeiro lugar porque uma leitura pragmática aconselha a partir da realidade social para a moldura jurídica, e não a restringirmo-nos a esta. O que a realidade nos mostra é a existência de uma escandalosa corrupção política e a total ineficácia da lei e das instituições de investigação para encontrarem provas e para estas serem válidas em tribunal. O que todos constatamos é o peso do formalismo e do processual sobre os factos.
Em segundo lugar a invocação política – não estamos a considerar as análises técnico-jurídicas – da inconstitucionalidade causam-nos sempre algum mal-estar. Segundo a constituição portuguesa “o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis.” Quando certos serviços públicos leram sem autorização prévia o correio eletrónico privado dos seus funcionários ninguém levantou o problema da inconstitucionalidade e moveu um processo contra o ministro da tutela. Segundo a constituição “é garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.”. Não vem sendo letra morta em muitos dos desempregados no nosso país?
Em terceiro lugar as posições dos juristas e dos factos são divergentes. Basta percorrer as referências ao problema nas audições na “Comissão Eventual para o Acompanhamento Político do fenómeno da Corrupção e para a Análise Integrada de soluções com vista ao seu Combate” para constatar um grande leque de posições: desde considerar que a aprovação desta proposta de lei seria um “retrocesso civilizacional” até aos que não vislumbram qualquer violação do sistema jurídico; desde considerar que o enriquecimento ilícito deveria apenas conduzir à penalização fiscal ou ao afastamento do cargo político à proposta de criminalização. Os factos mostram que esta criminalização não tem sido formulada na Europa (aliás um dos espaços mais permissivos hoje às fraudes, às atividades ilegais e ao branqueamento de capitais), mas outros países têm este crime no seu ordenamento jurídico; a “Convenção da ONU Contra a Corrupção” consagra essa possibilidade, cabendo aos Estados assumir a posição mais adequada; o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem “tem sido algo permissivo em relação à evolução da legislação no sentido de colher a ideia de presunção de culpabilidade”.
Entre a força das leis, que nestas matérias têm mostrado incapacidade de combater a corrupção política, e a força dos factos consideramos esta mais relevante. A prisão e condenação do Al Capone por razões fiscais, após nunca ter sido possível provar a sua ligação aos muitos assassinatos por ele ordenados, parece continuar a ser um bom exemplo da argúcia de combate ao ilícito.
6. De tudo o anteriormente afirmado poder-se-á concluir que faz sentido a proposta de criminalização do enriquecimento ilícito. Contudo temos diversas dúvidas e preocupações em relação à sua eficácia, o que apresentamos num ponto seguinte.
Antes disso um alerta. Se uma tal lei fosse aplicada à generalidade dos cidadãos, a sua função seria, de uma forma geral, contribuir para a redução da economia paralela (nomeadamente economia subterrânea e economia ilegal) e a prevenção e combate de todo o tipo de fraudes. Aplicando-se apenas aos cargos políticos, ou aos funcionários, e tendo-se iniciado a sua discussão em Portugal no contexto do combate à corrupção, parecem-nos avisadas as palavras de Dr. Júlio Pereira na referida comissão parlamentar:
“(...) acho que o enriquecimento injustificado [quiçá designação mais apropriada] não pode ser visto como um sucedâneo do crime de corrupção (...). Não é isso! Isso, aliás, seria desmotivar para a perseguição da corrupção, seria contraproducente se a finalidade fosse essa.
O que acontece é que o crime de enriquecimento injustificado tem outras razões. (...) a confiança dos cidadãos na correcção da acção administrativa é ou não um valor que importa preservar?”
Enfim, a sua existência justifica-se assim como se justifica a declaração de rendimentos, como se pugna pela transparência e visibilidade de todos os atos da administração pública.
7. Manifestemos, finalmente, as nossas preocupações sobre a eficácia de uma tal legislação.
Em primeiro lugar há muitas formas de encobrir património e “quem enriquece ilicitamente não vai dar os tais sinais exteriores”. Muitas são do foro pessoal (por exemplo, cofres) mas hoje está instituído todo um sistema formal e informal de movimentação de moeda e quase-moeda que escapa integralmente ao controlo dos Estados. As “praças financeiras internacionais”, os offshores, são uma peça fundamental nesse processo. São uma forma de concorrência fiscal desleal (que pode ser reduzida, na parte legal e visível, por uma taxa sobre as transferências para paraísos fiscais) mas é também uma via de criar empresas fantasma, de separar o usufruto da propriedade, de impedir as investigações policiais de forma a relacionar a pessoa com a sua propriedade. É possível acabar com essas situações, é possível o país tomar posições em organismos internacionais sobre o assunto (depois de liquidar o mau exemplo do offshore da Madeira), mas não é possível serem resolvidas apenas por um país.
Em segundo lugar, se se continuar a relacionar o crime do enriquecimento ilícito com a corrupção esta é “captada” pela via do corrompido. O corruptor fica ileso. Do ponto de vista político, da transparência do funcionamento do Estado, este é o elemento mais pernicioso. Contudo, do ponto de vista da criminalidade económica é muito provável que o corruptor seja o elemento criminalmente mais importante. Muitas atividades ilegais, associadas às máfias internacionais, passam por práticas ilícitas da administração do Estado, conseguidas por meio da corrupção.
Em terceiro lugar, sabendo-se da notória carência de meios para investigar o crime económico, incluindo a corrupção, resta-nos a dúvida se uma nova lei não vai desviar recursos indispensáveis para outras investigações. Se admitirmos, pela primeira razão aqui invocada, que só os incautos, os inaptos ou os corrompidos com a oferta de uma galinha serão apanhados nas malhas desta lei, interrogamo-nos se não estamos perante o vício português de legislar, esquecendo como as leis se comportam no terreno. Equivoco que faz com que, por vezes, as novas leis, acabem por prejudicar a execução das antigas leis (embora estas não pareçam interessantes, no que se refere à corrupção).
8. Que concluir?
Atendendo à importância da fraude e corrupção em Portugal e ao seu agravamento, atendendo à importância de todo o Estado ter paredes de vidro somos favoráveis à criminalização do enriquecimento ilícito.
Admitimos mesmo, se o âmbito de aplicação fosse outro, que poderia ser um contributo geral para o combate às parcelas nefastas da economia paralela e da fraude.
Impõe-se, no entanto, completar esta legislação com outras medidas políticas e legais de forma a bloquear, na medida do possível, os canais de fuga ao cumprimento da lei. Impõe-se que este novo crime não surja como a “solução milagreira” para superar a frustração com que se assiste ao branqueamento da corrupção.
É difícil, por muitas dúvidas que se tenha, pugnar pela transparência do Estado e não votar favoravelmente esta lei.
Substituamos o dogmatismo das certezas pela dúvida da experimentação!