Rui Henrique Alves, Visão on line,
Andaria eu no que então se chamava de “ciclo preparatório” quando ouvi, pela primeira vez, talvez numa aula de História, que “a democracia é o governo do povo, para o povo e pelo povo”. A expressão em causa era atribuída a um antigo presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, e nela se encerraria a grande virtude do sistema de governação política em que os países mais desenvolvidos se encontram há longos anos.
Olhando para os desenvolvimentos dos anos recentes em Portugal, ao nível da evolução do sistema político, parece-me poder reflectir-se até que ponto a não verificação no concreto daquela grande virtude poderá estar na origem da verdadeira crise, de ordem política, económica e social, que vivemos.
Será a nossa democracia um governo do povo? Será a nossa democracia um governo para o povo? Será a nossa democracia um governo pelo povo? Formalmente, claro que sim. Mas creio haver boas razões para concluir que, na prática, assim o não é e que a divergência entre o formal e o concreto se vem agravando nos últimos anos.
Não duvido que seja um governo do povo, afinal o destinatário final de todas as decisões tomadas no regime político. Mas já tenho sérias dúvidas, por exemplo, de que seja verdadeiramente um governo pelo povo...
É verdade que as escolhas dos governantes e das opções programáticas a seguir estão, em última análise, nas mãos do povo, que as expressa mediante eleições regulares. Mas a escolha dos governantes não é claramente livre. Pelo contrário, é altamente condicionada pelo sistema partidário, mesmo naqueles casos (como a eleição para Presidente da República) em que a apresentação de candidaturas decorre de um acto de liberdade individual.
Atentemos, por exemplo, no caso das eleições legislativas. Ninguém pode ser eleito fora da esfera partidária, uma vez que não existe qualquer previsão de candidaturas independentes. Assim sendo, só um grupo restrito de cidadãos se pode tornar deputado, escolhidos inicialmente pelos partidos políticos.
Nada de particularmente negativo resultaria desta situação, comum afinal a quase todas as sociedades desenvolvidas do mundo. O problema é que, ao longo do tempo, esta situação foi gerando efeitos perversos, decorrentes de fenómenos como a criação de espécies de clubes de amigos, a proliferação do carreirismo partidário ou a emergência de verdadeiros profissionais da política, cujos únicos méritos se reduzem às capacidades de articular relações pessoais. E o efeito mais perverso terá sido o do aumento a ritmos crescentes da mediocridade na condução dos interesses ditos públicos do País.
Tenho também sérias dúvidas de que tenhamos um governo para o povo. Não querendo entrar pelo caminho da demagogia, a verdade é que cada vez é maior o número de notícias e factos que apontam para negócios bem pouco claros, levados a cabo no quadro dos tais clubes de amigos ou, pelo menos, decisivamente influenciados por decisões públicas.
Saindo fora de tal esfera, também não faltam exemplos do modo como o interesse público, o do povo, é ultrapassado pelo interesse partidário ou pelo interesse particular. E indo um pouco mais longe, também não faltam exemplos do modo como o interesse do povo é facilmente esquecido, no quadro da falta de transparência ou simplesmente de verdade no discurso partidário e público. Afinal de contas, não seria do interesse do povo conhecer a verdade? Ou será preferível proporcionar-lhe ilusões, que, como o nome sugere, no médio e longo prazo não são obviamente sustentáveis?
No contexto desta breve reflexão, poder-se-á concluir que a democracia é uma grande ilusão do nosso tempo? Felizmente, creio que ainda não. Desde logo, porque continua por provar que exista um sistema, necessariamente imperfeito, melhor. Mas que há muito para mudar, sob pena de se tornar uma ilusão demasiado perigosa, lá isso há...