Amélia Monteiro , Visão online

Cansado de pagar impostos, taxas e taxinhas, decidiu que, logo que liquidasse o empréstimo da casa, cessaria a atividade de eletricista que exercia há mais de 30 anos e passaria a trabalhador informal, vulgo, biscateiro.

Cansado de pagar impostos, taxas e taxinhas, decidiu que, logo que liquidasse o empréstimo da casa, cessaria a atividade de eletricista que exercia há mais de 30 anos e passaria a trabalhador informal/biscateiro.

Fez contas à vida e concluiu que a soma dos descontos que mensalmente pagava à segurança social como empresário em nome individual, dos Pagamentos Especiais por Conta, do IVA e do IRS ficariam melhor no seu bolso como poupança para um final de vida confortável. Assim, era ele que controlava quanto poupava e de quanto dispunha na velhice. Com os descontos que, entretanto, foi fazendo (sempre pelos mínimos, claro), sempre teria direito a umas migalhas a título de reforma que daria para comprar a gasolina para uns passeios com a família.

Manteria a mesma atividade e, preferencialmente, a mesma carteira de clientes: proprietários de máquinas ligadas à construção civil. Bem vistas as coisas, todos tinham a ganhar: a diferença de preços que passaria a praticar compensaria largamente o IRC ou o IRS que esses clientes deixariam de pagar por considerar a fatura como custo. A margem de desconto era confortável: afinal de contas, deixaria de pagar IVA e IRS e ainda teria direito a benefícios fiscais, como isenção de taxas moderadoras e de IMI. Se soubesse fazer bem as coisas, ainda teria direito a Subsídio de Inserção Social, mas preferia não arriscar para não chamar a atenção.

Aliás, era algo que a esposa fazia com sucesso há alguns anos. Quando ficou desempregada depois da falência da empresa em que trabalhou durante 20 anos (começou aos 15 anos de idade), decidiu rentabilizar a sala e os legumes que o marido cultivava nas sopas, e começou a cuidar de crianças a partir dos 4 meses e até entrarem na escola. Nunca declarou qualquer rendimento e os pais ainda lhe ficam gratos por cuidar tão bem dos seus filhos.

A fatura nunca foi relevante no processo. Contas feitas, é bem mais seguro ter os filhos entregues a uma pessoa que conhecem e de quem os filhos gostam, do que deduzir as despesas com infantários que nunca têm vaga ou, então, são a preços proibitivos e longe do itinerário para o emprego. Além disso, estariam menos sujeitos a apanhar as viroses e infeções que os obrigariam vir para casa cuidar deles.

Agora era só atuar de modo a não chamar a atenção. Para evitar perguntas desnecessárias sobre a origem do dinheiro, antes de cessar a atividade comprou uma carrinha nova, que tinha capacidade para transportar o que necessitasse e passear com a família aos fins de semana. Duraria bem uns quinze anos sem problemas, altura em que pretendia reformar-se.

Claro que deixaria de ter conta bancária e passaria a pagar tudo em dinheiro vivo: desde o supermercado, à farmácia, combustível, eletricidade, água, telefones, condomínio, pronto a vestir, etc., e ainda poupava as despesas de manutenção.

Os materiais a aplicar seriam comprados em nome dos clientes e, de preferência, transportados nos carros deles. Ninguém suspeitaria da compra desse tipo de material no setor da construção civil.

Se, por azar, encontrasse alguns clientes que valessem a pena e exigissem fatura, então, praticaria um ato isolado e resolveria a situação. Se fossem vários a exigir fatura, já tinha combinado com um Técnico Oficial de Contas amigo, que arranjaria um dos seus clientes do ramo para emitir as faturas e a quem depois pagaria os impostos devidos.

Em último caso, ainda lhe restava um grande amigo que não lhe negaria um desses favores, se outros não se disponibilizasse a fazê-lo. Era só acertarem as contas para ele não ter prejuízo com as faturas emitidas por causa dele.

Continuaria naturalmente a cultivar o terreno que herdou dos pais, e a colher os legumes e a criar coelhos e galinhas que tão úteis se mostram na confeção das sopas das crianças e na alimentação da restante família.

Apeteceu-lhe sorrir quando, em plena Pandemia COVID 19, surgiu o convite para os trabalhadores informais passarem a integrar o sistema e a pagar os impostos e a fazer os descontos para a segurança social.

Como biscateiro na área de eletricista nunca sentiu os efeitos da Pandemia: as máquinas continuam a avariar e o setor para que trabalha não parou. Continua a viver folgadamente, mas sem sinais exteriores de riqueza que chamem a atenção sobre si e bem à margem do sistema. Ficaria a fazer parte da chamada “Economia Sombra” e das cifras negras.

Afinal de contas, quem melhor do que ele para controlar as poupanças para a velhice? Se tivesse um azar na vida que o incapacitasse, poderia sempre contar com o Estado Social. Contas feitas, ainda contribuiu uns anos para esse sistema, pelo que seria justo que o protegesse quando dele necessitasse…

Palavras: Informal, impostos, fatura, impostos, descontos, poupança, reforma, economia-sombra.